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domingo, 2 de fevereiro de 2014

A Psicologia é Ciência? Três Respostas Através da Filosofia.

Cientistas renascentistas observam pela primeira vez o que existe dentro do corpo humano.
O quadro se chama Anatomia, pintado por Rembrandt.

Existe certa dúvida sobre se a Psicologia é uma ciência ou não. Muitos questionam sobre essa questão, inclusive, com indagações do tipo "por que é necessário ou não que a Psicologia seja ciência?" e já meio que virou lugar comum afirmar que o senso comum valoriza a empreitada científica por questões ideológicas. Não estamos interessados aqui nessas respostas prontas, mas em uma que seja elaborada com alguma reflexão sobre o que é ciência. 

De fato existe certa pressão para que áreas do conhecimento mais claramente importantes para o público geral sejam tratadas de uma maneira científica e isso não surgiu de um mero capricho da população. Nos últimos séculos a humanidade conseguiu feitos fantásticos através do conhecimento produzido por cientistas: sabemos que estamos em um universo que beira ao infinito e podemos viver praticamente o dobro que nossos ancestrais; podemos voar mais que os pássaros e nadar mais que os peixes; podemos alterar o código genético das próprias espécies e viajar até a Lua. Mas nada disso veio através de conhecimentos misticos, religiosos ou do senso comum. 

Todas essas conquistas levam ao apelo da população para que as áreas do conhecimento que lidam com o humano também se tornem científicas, na esperança que também nelas aconteça tamanhas conquistas em favor de nós mesmos. E vale a pena notar que não estou defendendo nem acusando isso, mas apenas descrevendo a situação.

O problema aparece, na Psicologia, quando nos deparamos com um caso muito mais complexo do que pode parecer. Se por um lado é verdade que alguns psicólogos estão pesquisando em laboratórios ou usando metodologias rigorosas para ter alguma confiança no conhecimento que produzem, por outro lado também é verdade que estamos muito bem cercados por teorias e mais teorias criadas a partir das observações de seu criador e que ou não têm nenhuma validação experimental ou até foram falseadas cientificamente. E a Psicologia é todas essas teorias, demonstradas experimentalmente ou não.

Com isso é impossível não ficar confuso e perguntar: mas a Psicologia é uma ciência?

Essa pergunta me angustiou por alguns anos, contudo, antes de respondê-la acho necessário esclarecer que não estou me referindo à ciência entendida como qualquer tipo de conhecimento, mas ao conhecimento experimentalmente sustentado, que tem na ciência de laboratório seu melhor estereótipo.

Com algum tempo de pesquisa, descobri que seria impossível responder a essa pergunta através dos próprios psicólogos. Tentei isso uma vez e me pareceu que eles estavam perdidos feito soldados em uma guerra. Sabiam da situação caótica e também das ordens que precisam cumprir, mas desconheciam completamente os joguetes políticos por detrás do cenário global.

Depois de um árduo caminho, tive a sorte de me matricular em uma disciplina de Filosofia da Ciência ofertada pelo Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná. O professor Eduardo Barra, simpático como sempre, começou a primeira aula dizendo que todos nós temos alguma noção do que é ciência, e que o objetivo dele com aquela disciplina seria nos permitir refletir sobre essa noção de cada um e assim mudá-la. Para tanto, ele nos ensinou sobre três momentos importantes da Filosofia da Ciência do século XX. Em cada um deles minha noção de ciência sofreu uma "puxada de tapete". Em cada um deles eu obtive uma resposta para a questão da cientificidade da Psicologia.

Começamos pela tradição que ficou conhecida como Positivismo Lógico, proposto e defendido pelo renomado Círculo de Viena, no qual se encontravam filósofos importantes, tal como M. Schlick e R. Carnap. Em resumo, propunham que é científico o conhecimento que pudesse ser empiricamente verificado através da observação direta, ou seja, aquelas afirmações ou negações que pudessem ser de alguma forma confirmadas através da observação do cientista, que arquiteta seus experimentos para conseguir observar os fenômenos que estuda. Em um exemplo tosco, é científico dizer que a gravidade atrai os corpos para o centro da Terra porque posso observar experimentalmente que corpos em queda livre caem em direção ao centro do planeta. Acredito que essa noção de ciência é aquela conhecida, mesmo que intuitivamente, pelas pessoas do senso comum.

Se concordarmos que ciência é isso, então a Psicologia não pode ser uma ciência porque muitas de suas afirmações não são empiricamente verificáveis. Como observar a inteligência, a personalidade, o pensamento...? Ainda que W. Wundt tenha tentado fazê-lo através de seu método (e creiam, irmãos, a ciência de Wundt tinha pretensões positivistas), as duras críticas que a introspecção sofreu impediram-na de ser adotada até hoje. Outra tentativa de fazer uma ciência psicológica de acordo com os moldes do Positivismo Lógico aconteceu por parte do Comportamentismo (também chamado de Behaviorismo) de J. Watson, que também não deu muito certo.

Um dos grandes críticos do Positivismo Lógico foi K. Popper. De acordo com ele, os cientistas não trabalham para verificar suas hipóteses, pois isso seria fácil demais. O objetivo da ciência é falsear suas hipóteses. É uma lógica contrária do Positivismo Lógico: os experimentos científicos buscam evidências que contrariem as hipóteses testadas, e se uma hipótese resiste ao falseamento, então ela persiste. Atenção: uma confusão feita pela maioria das pessoas é que uma hipótese falseada não é científica... mas é sim. O que não é científico são hipóteses as quais a gente nem tem como tentar falsear. Por exemplo: a hipótese da existência de Deus não é científica porque não dá para ser falseada, já a hipótese de que a Terra é quadrada é científica, ainda que falsa.

A partir da perspectiva apresentada por Popper, mais uma vez podemos concluir que a Psicologia não é uma ciência. Ou isso ou é metade de uma ciência, já que existem abordagens que utilizam hipóteses falseadas e abordagens que utilizam hipóteses que não podem ser falseadas. O próprio Popper escreveu sobre a impossibilidade de falsear as hipóteses da Psicanálise e do Marxismo (lembrando que existe uma abordagem da Psicologia, a Sócio-Histórica, que possui o Marxismo como importante fundamento).

Popper, por sua vez, foi estudado e criticado por T. Kuhn, que defendia que a ciência pode ser definida apenas por sua metodologia, mas pela atividade dos cientistas. E ele demonstrou isso apresentando algumas situações em que hipóteses confirmadas não foram consideradas científicas, e hipóteses não falseadas foram consideradas científicas. De acordo com Kuhn, ciência é o que um grupo de cientistas concorda que é ciência. Ciência é definida, portanto, pelo consenso dos cientistas.

Por exemplo: durante o Renascimento, os pintores italianos concordaram que o objetivo da pintura era retratar o mais fiel possível aquilo que se dedicavam a pintar e, durante esse tempo, a pintura foi considerada uma ciência... até que esse consenso acabou e até hoje a pintura deixou de ser encarada como uma empreitada científica. Por outro lado, apenas quando todos os defensores da teoria do flogisto, na química, morreram é que foi possível para os defensores da teoria das reações químicas entre elementos fazer da Química a ciência do jeito como a conhecemos hoje. Enquanto esses dois grupos opostos coexistiram, a Química era uma bagunça de teorias e experimentos que ninguém conseguia dizer que era ciência.

Fica facilmente perceptível a similaridade da Psicologia com essa química "pré-histórica", ou seja, a partir da teoria do Kuhn, a Psicologia, pela terceira vez neste texto, também não pode ser considerada uma ciência, pois não há consenso entre os psicólogos.

A partir desses três momentos da Filosofia da Ciência, pudemos concluir que a Psicologia não é uma disciplina científica... e agora? O que faremos?

Antes de mais nada: não é preciso se desesperar. Essas três respostas não constituem uma resposta final para a questão, e ainda que eu não goste de deixar questões abertas, essa é uma. Existem diversas outras respostas para esse problema e muita gente também está refletindo sobre ele. Além disso, a Psicologia não vai deixar de existir por que não é científica, ainda que alguns autores alertem sobre essa possibilidade.

Estamos acostumados a valorizar aquilo que é chamado científico e a duvidar do que não o é. Temos bons motivos para isso, mas ainda que o tenhamos, vale a pena pensar: o que a Psicologia ganharia por ser considerada científica? O que perderia? Na prática, que diferença faz?

No próximo texto não pretendo abordar essas perguntas, mas mergulhar um pouco mais profundamente no problema. Quando estudei Kuhn, consegui entender satisfatoriamente a situação da Psicologia e, mais uma vez resumindo uma possível interpretação, pretendo analisar a situação da Psicologia através da teoria dos paradigmas, de Kuhn. Consegui acalmar algumas das minhas inquietações sobre o estado da Psicologia através disso, e espero que meus colegas incomodados com esses mesmos problemas possam encontrar algum ponto de referência.

Como disse o professor Adriano Holanda, depois de apresentar à turma a eterna discussão entre racionalistas e empiristas: durmam com esse barulho.


sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O Caso do Cachimbo e o Ensino da Filosofia

O polêmico cachimbo de Magritte. Ou não.

E então, isso é um cachimbo?

Reza a lenda que Magritte, o criador dessa obra de arte, levou-a para um concurso com a inscrição "isto não é um cachimbo" e pronto, precisou apenas do primeiro artista vê-la para começar a discussão. Uns diziam que era um cachimbo sim, e estava tão bem pintado que seria tolo quem afirmasse que não era. Outros respondiam que ingenuidade era dizer que aquilo era um cachimbo, pois não passava de uma pintura.

Mas e então, é um cachimbo ou não é?

Meu objetivo neste texto não é responder essa pergunta, mas defender que as aulas de Filosofia deveriam ser um pouco mais semelhantes a esse episódio. E quem de vocês se lembra das aulas de Filosofia do Ensino Médio? Espero que não tenham sido tão ruins a ponto de tê-esquecido.

Desde 2006, quando o Parecer 38/2006 do Ministério da Educação (MEC) tornou o ensino de Filosofia e Sociologia obrigatório no Ensino Médio, algumas dezenas de milhares de todos nós tivemos de enfrentar professores dessas duas matérias, juntamente com as outras, às quais já estávamos acostumados.

O fato curioso nessa situação foi que, embora o MEC tenha se esforçado para fornecer materiais instrutivos sobre o que essas aulas deveriam abordar, aparentemente cada professor em cada escola ensinava assuntos diferentes para seus alunos. Isso quando ensinava, já que muitos desses alunos entendia que essas  duas matérias eram algo semelhante ao prolongamento do Ensino Religioso para o Ensino Médio, ou seja, aquela matéria em que você tem tempo para descansar já que não faz nada, ou ainda quando o professor era capacitado o suficiente para saber o que estava fazendo, o que muito pareceu não ser o caso de um bocado deles.

Já ouvi casos de professores que ensinavam Psicanálise de Freud, o que está longe de ser Filosofia. Já ouvi casos de professores que levavam notícias cotidianas para os alunos abordarem-nas filosoficamente, e resultava em um fracasso porque eles não sabiam como abordar filosoficamente qualquer assunto. Não me deterei nesses casos. O problema que quero atacar aqui são os professores que, tanto no Ensino Médio quando no Superior, usam das aulas de filosofia para "passar conteúdo" filosófico a seus alunos.

É fácil reconhecê-los. Sua principal característica é que costumam ser extremamente chatos. Insistindo que você se lembre que Aristóteles foi o pai da Lógica, e que René Descartes escreveu "penso, logo existo". Isso é tão horrível quanto aqueles professores de História, sorte teremos se hoje estiverem extintos, que insistiam para os alunos decorarem os acontecimentos históricos, com data e tudo mais.

Também vale notar que eles se prendem a ensinar a história da Filosofia. Agora, cá entre nós, qualquer um que se deter um pouco a refletir sobre isso perceberá que história da Filosofia não é filosofia. Primeiro porque é história (derrr... óbvio) e segundo porque revisar as respostas que os filósofos deram para as grandes questões da humanidade não significa que essas são as respostas certas, já que não há respostas certas e essas questões estão abertas até hoje. E terceiro porque, ainda que essas respostas sejam certas, são as respostas DAQUELES filósofos, e nada impede que outros tenham chegado a respostas diferentes, também válidas.

O resultado da prática desses professores é desastroso na minha opinião: eles produzem alunos que acreditam que filosofar é essa coisa entediante de lembrar o que um filósofo disse perante tal situação numa determinada época. Nada menos filosófico, nada mais dogmático! E o que é pior: esses alunos acabam por não aprender a filosofar! Aprendem apenas a repetir o que as pessoas dizem; não aprendem a pensar por si mesmos! Não aprendem a analisar, refletir, se encantar pelas coisas... não aprendem a questionar!

Sou contra tudo isso, e defendo ardentemente que esse tipo de ensino de Filosofia, principalmente no Ensino Médio em que ela é acessível à mais pessoas, seja abandonado. Proponho uma alternativa, que alguns professores têm chamado de Metodologia Ativa, mas por não gostar desse nome, chamo de Ensino por Problemas.

Minha proposta é a seguinte: ao invés do professor ensinar o que um filósofo escreveu em sua época diante de uma determinada questão filosófica, e assim sucessivamente durante toda a história do pensamento filosófico, é muito mais interessante que ele apresente a questão a seus alunos e peça-lhes para responderem-na.

Começa com uma apresentação da questão de maneira que os alunos consigam compreendê-la. Não adianta, por exemplo, apresentar a questão cerne da metafísica "o que é?" assim, sem mais nem menos. Ninguém vai entender. É preciso explicá-la, detalhá-la, analisá-la junto aos alunos até que eles a compreendam. Essa é uma parte do papel do professor de Filosofia, contudo ele não deve se limitar a ela.

Depois que o problema foi compreendido, os alunos devem tentar resolvê-lo. Nesse momento, pedir para que trabalhem em duplas pode ser interessante, uma vez que a discussão facilita a reflexão. Porém, apenas discutir em duplas provavelmente não bastará. Dependendo do contato que eles tiveram com a Filosofia durante suas vidas, dificilmente saibam como proceder diante de um problema filosófico e isso pode desesperá-los, mas considerando que muitos filósofos também não sabem como proceder também, então isso não é algo tão catastrófico. Dessa forma, o professor, cumprindo com seu papel de guia, pode fornecer aos alunos algumas ferramentas que auxiliem na produção de uma resposta que resolva o problema filosófico em questão.

É nesse momento que entram os outros filósofos, clássicos da história da Filosofia. Citar um pouco da reflexão que um fez, um trecho da reflexão que outro fez, um pedacinho da contribuição de um terceiro para a questão pode auxiliar os alunos a pensarem por si mesmos. Deixando claro que a resposta de tal filósofo não é a última, nem a mais verdadeira.

No final, o professor deve decidir até que ponto os alunos devem ir, baseando-se até que ponto conseguem chegar. Alunos com menos contato com assuntos filosófico devem ir menos, aos poucos, se acostumando com esse jeito diferente de pensar, de acordo com suas próprias capacidades, e a recíproca é verdadeira.

Também é importante, nesse ponto, o professor não se frustrar com as respostas que aparecerem. Lembre-se de que aprender a pensar filosoficamente é difícil e requer muito tempo de prática, então seu dever é proporcionar mais oportunidades para que eles pratiquem. E com a prática virá a perfeição. Pouco a pouco, em passos pequenos, ele chegarão lá, mas isso requer paciência dos professores.

Considerando tudo isso, chega a parte que acho mais divertida: quais são as questões filosóficas a serem usadas? Descobri-las e prepará-las, montando explicações para facilitar seu entendimento é uma das tarefas do professor de Filosofia. Eu gosto muito de, nesse momento, pegar meus livros de História da Filosofia e tentar descobrir quais eram as questões que os filósofos estavam tentando responder. Quais os problemas filosóficos que os pré-Socráticos enfrentavam? Quais problemas Aristóteles abordou? Sobre quais dúvidas Agostinho de Hipona filosofou? Quais problemas tanto incomodaram Nietzsche?

Só para dar um gostinho, aqui vão algumas dessas questões com as quais tenho mais familiaridade:

Metafísica: o que é? Quais são as condições suficientes e necessárias para alguma coisa existir? Quais são as condições suficientes e necessárias para alguma coisa não existir? Como o nada e o tudo podem coexistir? Existe algo para além do que percebemos ou tudo o que existe é o que percebemos? Existe algum sentido na existência?

Ética: o que é bom e por que é bom? O que é errado, e por que é errado? Por que alguém deve agir corretamente? Como agir corretamente? Como ser feliz?

Estética: o que é o belo? O que é o feio? O que diferencia o belo do feio? O que é o sublime? O que é o grotesco?

Epistemologia: o que é o conhecimento? Como temos certeza de que conhecemos alguma coisa? O que é o ceticismo? Qual a origem do conhecimento?

Filosofia da ciência: o que é ciência? O que diferencia a ciência da filosofia? O que diferencia a ciência do senso comum? E da religião?

Esses exemplos já podem dar uma ideia de que não faltam problemas filosóficos para os alunos abordarem.

Termino este texto reiterando que essa metodologia do ensino de Filosofia que esbocei acima tem uma grande vantagem sobre a metodologia comum: enquanto o que os alunos comumente aprendem é repetir o que os outros disseram, através do que proponho eles terão a oportunidade de aprender a pensar por si mesmos. E não vejo melhor função que essa para a Filosofia.

[Mas afinal de contas, é ou não é um cachimbo?]


sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Profissão Perigo: Filósofo!

O texto de inauguração deste blog terminou com um convite: da mesma forma que qualquer um pode usar um martelo, qualquer um também pode filosofar, ou seja, abandone essa sua preguiça moral e ouse questionar, criticar e refletir mais!

Neste texto, contudo, pretendo deixar um alerta: ainda que todo humano consiga filosofar e deva se esforçar para fazê-lo, a Filosofia não é uma área do conhecimento fácil... e muito menos uma área SEGURA! Isso mesmo, o objetivo aqui é mostrar que ser um filósofo é uma profissão perigosa, arriscada e que é necessário conhecer isso antes de tomar esta atividade como profissão.

Aquele clichê de que o filósofo é um cara avoado, com a cabeça nas nuvens e completamente distraído para o mundo que o cerca, deve ter começado (segundo escreveu Marilnea Chauí em seu livro Convite à Filosofia) com Tales de Mileto, que é considerado o primeiro do tipo. Dizem que, preocupado como ele era com os corpos celestes, vivia olhando para cima, contemplando-os até mesmo enquanto caminhava pelas ruas, o que o levava a vários tombos e machucados. Insisto, no entanto, que por mais engraçada que seja, essa metáfora da vida do filósofo deve ser abandonada. Filosofar envolve muito mais risco que apenas um joelho ralado ou uma canelada.

Exatamente porque uma parte da tarefa da tarefa do filósofo é analisar, e a marreta, digo, a crítica, é sua principal ferramenta nessa atividade. Distribuir golpes de crítica com precisão e força suficiente para testar a consistência de uma crença, de uma ideia, de um conceito, noção ou argumento é a parte inicial do trabalho de qualquer filósofo, e qualquer um que pense que isso não envolve risco nenhum pode começar a ter dúvidas.

Faça o seguinte experimento: viaje para o Irã, país mundialmente famoso por seus religiosos extremistas. Chegando lá, procure um templo religioso e, encontrando alguém com quem consiga conversar, erga sua marreta crítica e afirme que a religião é uma perda de tempo, que a metafísica já foi morta repetidas vezes e que há uma série de argumentos filosóficos e científicos afirmando que deuses não existem para além da invenção humana e que você concorda nisso.

Seria burrice, e uma burrice muito perigosa, fazer uma coisa dessas, mas o exemplo é ilustrativo. Um filósofo que defendesse a inexistência de Deus, seja aqui seja no Paquistão, corre o risco de enfrentar muito mais que os argumentos daqueles que acreditam no contrário e se sentem ameaçados por isso. Experimente fazer o mesmo experimento no meio de um culto protestante e tente sair ileso.

Filosofar também é perigoso em uma escala ainda menor. Mais uma vez erga sua marreta-crítica e, munido de lógica afiada, observação atenta e disposição para debater, experimente conversar com qualquer pessoa. O senso comum, como comumente sabemos, está recheado de crenças, noções e argumentos tão furados quanto uma peneira. Não estou recomendando que você vá defender a inexistência de algo, mas que apenas, seguindo o exemplo de Sócrates, comece a questionar criticamente o que uma pessoa te fala. Experimente, por exemplo, aguardar alguém dizer que qualquer frase relacionada a saber algo sobre alguma coisa ou alguém, e questione "mas o que é o conhecimento?". Analise e questione criticamente as respostas dadas. O resultado disso não será alguém que esteja animado para contemplar a própria ignorância e refletir sobre o que é o conhecimento, mas uma uma pessoa possivelmente brava contigo por ter mostrado ao público a ignorância dela sobre algo tão cotidiano e presumidamente simples quanto a definição de conhecimento.

Agora passe a fazer isso profissionalmente, ou seja, no mínimo oito horas diárias e logo você conseguirá uma legião de pessoas ressentidas contigo e prontas para te agredir ou, melhor ainda, te evitar. Ao decidir pelo martelo da Filosofia, considere se consegue viver bem sozinho. Não que você será completamente ostracizado pelo restante dos 7 bilhões de pessoas que compartilham este planeta conosco; longe disso. Mas é bom se preparar para ver muitas pessoas se afastando da sua companhia apenas porque você ousou pensar um pouco mais e um pouco melhor.

Ser agredido, direta ou indiretamente, e ser abandonado, também direta ou indiretamente, por outras pessoas são perigos reais frequentemente enfrentados por muitos filósofos. No entanto, existe um terceiro perigo da profissão filósofo que acho particularmente preocupante. Questionar as certezas das pessoas lhes causa certo incômodo advindo da insegurança. Ora, quando alguém me leva a questionar algo que antes eu considerava uma certeza e então percebo aquilo como incerto, posso facilmente ser abatido por uma insegurança ameaçadora. Questionar, então, as próprias certezas, sistemática e criticamente pode ser ainda mais angustiante.

Mais angustiante, afirmo, porque diferentemente das outras pessoas que podem se afastar, você não pode fugir de si mesmo. Drogas, orgias, vídeo-game e o cotidiano podem até te iludir, te hipnotizar e te afastar de si mesmo por algum tempo, mas nunca para sempre e mais cedo ou mais tarde você voltará a se questionar, a se criticar e a ter suas próprias crenças colocadas em dúvida. Imagine, portanto, a crescente sensação de insegurança sentida pelo filósofo profissional que toma a si mesmo como alvo de seu trabalho. Imagine ter todas as sua certezas criticamente questionadas. É como se o próprio chão se dissolvesse e lentamente te engolisse, levando-o para algum lugar completamente desconhecido. E o desconhecido nos ameaça porque é incerto, inseguro e desconfiável. O filósofo que questiona a si mesmo é uma tragédia ambulante, e desse ponto de vista não é estranho que tantos cometam suicídio.

Filosofar, ao contrário do que se imagina ingenuamente, é uma atividade perigosa e requer uma dose de coragem ou de ingenuidade para qualquer um que ouse adotar a Filosofia como profissão. Espero neste texto ter deixado isso claro o suficiente a ponto de que ninguém que o leia tome essa decisão sem saber do perigo que corre, e claro o suficiente para que, conhecendo os perigos, todos possam começar suas martelas. Afinal de contas, quando conhecemos alguma coisa sobre o perigo diante de nós fica mais fácil enfrentá-lo.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Filosofando a Golpes de Martelo.

Capa do livro que inspirou este texto
Imagino que, seja na vida real, seja no cinema, todos nós já vimos o efeito de um golpe de marreta em uma parede ou em outra construção humana. Agora, imaginem uma estátua de gesso. Pode ser a do Platão, por exemplo. Imaginem aquele busto do Platão que costumamos encontrar nos livros de filosofia por aí. Então, imaginem o efeito de um golpe de martelo bem no meio das fuças do busto do Platão.

Simbolicamente, isso é filosofar a marteladas. Não, não é um incentivo à depredação de bustos e outras estatuetas do patrimônio cultural. Devemos manter o cuidado de não pensar tão literalmente.

Busto clássico de Platão
prestes a tomar uma martelada nas fuças.
Essa ideia foi popularizada por Nietzsche, através do subtítulo de seu livro “Crepúsculo dos Deuses: Ou Como Filosofar a Golpes de Martelo”. Não sou um profundo conhecedor do pensamento desse filósofo, mas me atrevo a ler alguma coisa e a pensar com minha própria cabeça. Nietzsche mostrou insistentemente os perigos de adorarmos ídolos e insistiu até a beira de ser considerado um chato impertinente, o quanto não apenas as pessoas do senso comum como também os próprios filósofos caem em adoração a ídolos.

Vale a pena ressaltar que esses ídolos não são os participantes daquele programa do SBT e nem são os artistas, cantores ou super-heróis da cultura popular. Bem, mais ou menos. Os ídolos dos quais Nietzsche nos alertou eram intelectuais e pensadores considerados clássicos e consagrados na história da Filosofia, ou melhor ainda, as ideias propostas por tais pessoas. O Platão, do exemplo acima, pode ser considerado um expoente dentre eles.

Exemplo de ídolo religioso pagão.
Ídolo, nesse contexto, também possui outro significado. Nos antigos tempos bíblicos, ídolos eram as estátuas de barro que alguns povos faziam para representar suas divindades. Nietzsche usou esse termo metaforicamente. Segundo seu argumento, hoje nós dificilmente fazemos ídolos de barro (o pessoal católico fazia suas imagens de madeira, algumas vezes oca, mas agora fazem de qualquer material, do ouro ao plástico), mas algumas ideias que aceitamos sem criticar acabam por se tornar ídolos. Aceitamo-las e as veneramos como a divindades.

Um ídolo dos nossos tempos, por exemplo, é a superioridade da espécie humana quanto aos outros animais. Um ídolo ainda mais falso é a superioridade de alguns povos sobre outros. Terrível como a história está repleta desses exemplos. Um ainda mais comum é a superioridade das pessoas ricas sobre as pobres.

O trabalho da filosofia, a partir disso, é destruir tais ídolos. Como a ilustração da martelada no busto de Platão, o filósofo deve levar seu raciocínio crítico às margens da impossibilidade para destruir todas essas ideias e buscar o que se esconde atrás delas.

A história do pensamento ocidental (o oriental me parece que não) nos dá alguns exemplos interessantes de ídolos destruídos. Copérnico é famoso por destruir a noção de que a Terra era quadrada. Hume destruiu a noção de causa como um princípio ontológico independente dos fatos. Darwin destruiu o ídolo da origem especial do ser humano. Freud destruiu a noção de que somos seres perfeitamente conscientes e racionais. Skinner destruiu o ídolo do livre-arbítrio.

Terminando este texto, deixo um convite. Qualquer pessoa consegue usar um martelo e, portanto, o trabalho de filosofar à marteladas não deve ser deixado apenas para os filósofos. Ainda que da mesma forma que um mestre de obras tem muito mais experiência no uso da marreta que um iniciante, também aquele que começa a questionar suas crenças, e as dos outros,  pode sentir o braço doer depois das primeiras marteladas, criar bolhas nas mãos. Contudo, com a prática vem a experiência, e o que antes era dolorido e difícil de se fazer, torna-se fácil, leve e até mais preciso. Antes os braços que doíam após tantas marteladas agora ficam ágeis e poderosos ao usar seu instrumento. Antes o senso crítico que era lento e exigia muito esforço, depois de muita prática torna-se ágil e afiado. Qualquer um pode aprender.

Há de se perceber, por fim, que o mesmo martelo usado para destruir também pode ser usado para construir. E assim, do raciocínio crítico e ousado, belíssimas obras de arte surgirão.