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sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Profissão Perigo: Filósofo!

O texto de inauguração deste blog terminou com um convite: da mesma forma que qualquer um pode usar um martelo, qualquer um também pode filosofar, ou seja, abandone essa sua preguiça moral e ouse questionar, criticar e refletir mais!

Neste texto, contudo, pretendo deixar um alerta: ainda que todo humano consiga filosofar e deva se esforçar para fazê-lo, a Filosofia não é uma área do conhecimento fácil... e muito menos uma área SEGURA! Isso mesmo, o objetivo aqui é mostrar que ser um filósofo é uma profissão perigosa, arriscada e que é necessário conhecer isso antes de tomar esta atividade como profissão.

Aquele clichê de que o filósofo é um cara avoado, com a cabeça nas nuvens e completamente distraído para o mundo que o cerca, deve ter começado (segundo escreveu Marilnea Chauí em seu livro Convite à Filosofia) com Tales de Mileto, que é considerado o primeiro do tipo. Dizem que, preocupado como ele era com os corpos celestes, vivia olhando para cima, contemplando-os até mesmo enquanto caminhava pelas ruas, o que o levava a vários tombos e machucados. Insisto, no entanto, que por mais engraçada que seja, essa metáfora da vida do filósofo deve ser abandonada. Filosofar envolve muito mais risco que apenas um joelho ralado ou uma canelada.

Exatamente porque uma parte da tarefa da tarefa do filósofo é analisar, e a marreta, digo, a crítica, é sua principal ferramenta nessa atividade. Distribuir golpes de crítica com precisão e força suficiente para testar a consistência de uma crença, de uma ideia, de um conceito, noção ou argumento é a parte inicial do trabalho de qualquer filósofo, e qualquer um que pense que isso não envolve risco nenhum pode começar a ter dúvidas.

Faça o seguinte experimento: viaje para o Irã, país mundialmente famoso por seus religiosos extremistas. Chegando lá, procure um templo religioso e, encontrando alguém com quem consiga conversar, erga sua marreta crítica e afirme que a religião é uma perda de tempo, que a metafísica já foi morta repetidas vezes e que há uma série de argumentos filosóficos e científicos afirmando que deuses não existem para além da invenção humana e que você concorda nisso.

Seria burrice, e uma burrice muito perigosa, fazer uma coisa dessas, mas o exemplo é ilustrativo. Um filósofo que defendesse a inexistência de Deus, seja aqui seja no Paquistão, corre o risco de enfrentar muito mais que os argumentos daqueles que acreditam no contrário e se sentem ameaçados por isso. Experimente fazer o mesmo experimento no meio de um culto protestante e tente sair ileso.

Filosofar também é perigoso em uma escala ainda menor. Mais uma vez erga sua marreta-crítica e, munido de lógica afiada, observação atenta e disposição para debater, experimente conversar com qualquer pessoa. O senso comum, como comumente sabemos, está recheado de crenças, noções e argumentos tão furados quanto uma peneira. Não estou recomendando que você vá defender a inexistência de algo, mas que apenas, seguindo o exemplo de Sócrates, comece a questionar criticamente o que uma pessoa te fala. Experimente, por exemplo, aguardar alguém dizer que qualquer frase relacionada a saber algo sobre alguma coisa ou alguém, e questione "mas o que é o conhecimento?". Analise e questione criticamente as respostas dadas. O resultado disso não será alguém que esteja animado para contemplar a própria ignorância e refletir sobre o que é o conhecimento, mas uma uma pessoa possivelmente brava contigo por ter mostrado ao público a ignorância dela sobre algo tão cotidiano e presumidamente simples quanto a definição de conhecimento.

Agora passe a fazer isso profissionalmente, ou seja, no mínimo oito horas diárias e logo você conseguirá uma legião de pessoas ressentidas contigo e prontas para te agredir ou, melhor ainda, te evitar. Ao decidir pelo martelo da Filosofia, considere se consegue viver bem sozinho. Não que você será completamente ostracizado pelo restante dos 7 bilhões de pessoas que compartilham este planeta conosco; longe disso. Mas é bom se preparar para ver muitas pessoas se afastando da sua companhia apenas porque você ousou pensar um pouco mais e um pouco melhor.

Ser agredido, direta ou indiretamente, e ser abandonado, também direta ou indiretamente, por outras pessoas são perigos reais frequentemente enfrentados por muitos filósofos. No entanto, existe um terceiro perigo da profissão filósofo que acho particularmente preocupante. Questionar as certezas das pessoas lhes causa certo incômodo advindo da insegurança. Ora, quando alguém me leva a questionar algo que antes eu considerava uma certeza e então percebo aquilo como incerto, posso facilmente ser abatido por uma insegurança ameaçadora. Questionar, então, as próprias certezas, sistemática e criticamente pode ser ainda mais angustiante.

Mais angustiante, afirmo, porque diferentemente das outras pessoas que podem se afastar, você não pode fugir de si mesmo. Drogas, orgias, vídeo-game e o cotidiano podem até te iludir, te hipnotizar e te afastar de si mesmo por algum tempo, mas nunca para sempre e mais cedo ou mais tarde você voltará a se questionar, a se criticar e a ter suas próprias crenças colocadas em dúvida. Imagine, portanto, a crescente sensação de insegurança sentida pelo filósofo profissional que toma a si mesmo como alvo de seu trabalho. Imagine ter todas as sua certezas criticamente questionadas. É como se o próprio chão se dissolvesse e lentamente te engolisse, levando-o para algum lugar completamente desconhecido. E o desconhecido nos ameaça porque é incerto, inseguro e desconfiável. O filósofo que questiona a si mesmo é uma tragédia ambulante, e desse ponto de vista não é estranho que tantos cometam suicídio.

Filosofar, ao contrário do que se imagina ingenuamente, é uma atividade perigosa e requer uma dose de coragem ou de ingenuidade para qualquer um que ouse adotar a Filosofia como profissão. Espero neste texto ter deixado isso claro o suficiente a ponto de que ninguém que o leia tome essa decisão sem saber do perigo que corre, e claro o suficiente para que, conhecendo os perigos, todos possam começar suas martelas. Afinal de contas, quando conhecemos alguma coisa sobre o perigo diante de nós fica mais fácil enfrentá-lo.

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