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domingo, 2 de fevereiro de 2014

A Psicologia é Ciência? Três Respostas Através da Filosofia.

Cientistas renascentistas observam pela primeira vez o que existe dentro do corpo humano.
O quadro se chama Anatomia, pintado por Rembrandt.

Existe certa dúvida sobre se a Psicologia é uma ciência ou não. Muitos questionam sobre essa questão, inclusive, com indagações do tipo "por que é necessário ou não que a Psicologia seja ciência?" e já meio que virou lugar comum afirmar que o senso comum valoriza a empreitada científica por questões ideológicas. Não estamos interessados aqui nessas respostas prontas, mas em uma que seja elaborada com alguma reflexão sobre o que é ciência. 

De fato existe certa pressão para que áreas do conhecimento mais claramente importantes para o público geral sejam tratadas de uma maneira científica e isso não surgiu de um mero capricho da população. Nos últimos séculos a humanidade conseguiu feitos fantásticos através do conhecimento produzido por cientistas: sabemos que estamos em um universo que beira ao infinito e podemos viver praticamente o dobro que nossos ancestrais; podemos voar mais que os pássaros e nadar mais que os peixes; podemos alterar o código genético das próprias espécies e viajar até a Lua. Mas nada disso veio através de conhecimentos misticos, religiosos ou do senso comum. 

Todas essas conquistas levam ao apelo da população para que as áreas do conhecimento que lidam com o humano também se tornem científicas, na esperança que também nelas aconteça tamanhas conquistas em favor de nós mesmos. E vale a pena notar que não estou defendendo nem acusando isso, mas apenas descrevendo a situação.

O problema aparece, na Psicologia, quando nos deparamos com um caso muito mais complexo do que pode parecer. Se por um lado é verdade que alguns psicólogos estão pesquisando em laboratórios ou usando metodologias rigorosas para ter alguma confiança no conhecimento que produzem, por outro lado também é verdade que estamos muito bem cercados por teorias e mais teorias criadas a partir das observações de seu criador e que ou não têm nenhuma validação experimental ou até foram falseadas cientificamente. E a Psicologia é todas essas teorias, demonstradas experimentalmente ou não.

Com isso é impossível não ficar confuso e perguntar: mas a Psicologia é uma ciência?

Essa pergunta me angustiou por alguns anos, contudo, antes de respondê-la acho necessário esclarecer que não estou me referindo à ciência entendida como qualquer tipo de conhecimento, mas ao conhecimento experimentalmente sustentado, que tem na ciência de laboratório seu melhor estereótipo.

Com algum tempo de pesquisa, descobri que seria impossível responder a essa pergunta através dos próprios psicólogos. Tentei isso uma vez e me pareceu que eles estavam perdidos feito soldados em uma guerra. Sabiam da situação caótica e também das ordens que precisam cumprir, mas desconheciam completamente os joguetes políticos por detrás do cenário global.

Depois de um árduo caminho, tive a sorte de me matricular em uma disciplina de Filosofia da Ciência ofertada pelo Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná. O professor Eduardo Barra, simpático como sempre, começou a primeira aula dizendo que todos nós temos alguma noção do que é ciência, e que o objetivo dele com aquela disciplina seria nos permitir refletir sobre essa noção de cada um e assim mudá-la. Para tanto, ele nos ensinou sobre três momentos importantes da Filosofia da Ciência do século XX. Em cada um deles minha noção de ciência sofreu uma "puxada de tapete". Em cada um deles eu obtive uma resposta para a questão da cientificidade da Psicologia.

Começamos pela tradição que ficou conhecida como Positivismo Lógico, proposto e defendido pelo renomado Círculo de Viena, no qual se encontravam filósofos importantes, tal como M. Schlick e R. Carnap. Em resumo, propunham que é científico o conhecimento que pudesse ser empiricamente verificado através da observação direta, ou seja, aquelas afirmações ou negações que pudessem ser de alguma forma confirmadas através da observação do cientista, que arquiteta seus experimentos para conseguir observar os fenômenos que estuda. Em um exemplo tosco, é científico dizer que a gravidade atrai os corpos para o centro da Terra porque posso observar experimentalmente que corpos em queda livre caem em direção ao centro do planeta. Acredito que essa noção de ciência é aquela conhecida, mesmo que intuitivamente, pelas pessoas do senso comum.

Se concordarmos que ciência é isso, então a Psicologia não pode ser uma ciência porque muitas de suas afirmações não são empiricamente verificáveis. Como observar a inteligência, a personalidade, o pensamento...? Ainda que W. Wundt tenha tentado fazê-lo através de seu método (e creiam, irmãos, a ciência de Wundt tinha pretensões positivistas), as duras críticas que a introspecção sofreu impediram-na de ser adotada até hoje. Outra tentativa de fazer uma ciência psicológica de acordo com os moldes do Positivismo Lógico aconteceu por parte do Comportamentismo (também chamado de Behaviorismo) de J. Watson, que também não deu muito certo.

Um dos grandes críticos do Positivismo Lógico foi K. Popper. De acordo com ele, os cientistas não trabalham para verificar suas hipóteses, pois isso seria fácil demais. O objetivo da ciência é falsear suas hipóteses. É uma lógica contrária do Positivismo Lógico: os experimentos científicos buscam evidências que contrariem as hipóteses testadas, e se uma hipótese resiste ao falseamento, então ela persiste. Atenção: uma confusão feita pela maioria das pessoas é que uma hipótese falseada não é científica... mas é sim. O que não é científico são hipóteses as quais a gente nem tem como tentar falsear. Por exemplo: a hipótese da existência de Deus não é científica porque não dá para ser falseada, já a hipótese de que a Terra é quadrada é científica, ainda que falsa.

A partir da perspectiva apresentada por Popper, mais uma vez podemos concluir que a Psicologia não é uma ciência. Ou isso ou é metade de uma ciência, já que existem abordagens que utilizam hipóteses falseadas e abordagens que utilizam hipóteses que não podem ser falseadas. O próprio Popper escreveu sobre a impossibilidade de falsear as hipóteses da Psicanálise e do Marxismo (lembrando que existe uma abordagem da Psicologia, a Sócio-Histórica, que possui o Marxismo como importante fundamento).

Popper, por sua vez, foi estudado e criticado por T. Kuhn, que defendia que a ciência pode ser definida apenas por sua metodologia, mas pela atividade dos cientistas. E ele demonstrou isso apresentando algumas situações em que hipóteses confirmadas não foram consideradas científicas, e hipóteses não falseadas foram consideradas científicas. De acordo com Kuhn, ciência é o que um grupo de cientistas concorda que é ciência. Ciência é definida, portanto, pelo consenso dos cientistas.

Por exemplo: durante o Renascimento, os pintores italianos concordaram que o objetivo da pintura era retratar o mais fiel possível aquilo que se dedicavam a pintar e, durante esse tempo, a pintura foi considerada uma ciência... até que esse consenso acabou e até hoje a pintura deixou de ser encarada como uma empreitada científica. Por outro lado, apenas quando todos os defensores da teoria do flogisto, na química, morreram é que foi possível para os defensores da teoria das reações químicas entre elementos fazer da Química a ciência do jeito como a conhecemos hoje. Enquanto esses dois grupos opostos coexistiram, a Química era uma bagunça de teorias e experimentos que ninguém conseguia dizer que era ciência.

Fica facilmente perceptível a similaridade da Psicologia com essa química "pré-histórica", ou seja, a partir da teoria do Kuhn, a Psicologia, pela terceira vez neste texto, também não pode ser considerada uma ciência, pois não há consenso entre os psicólogos.

A partir desses três momentos da Filosofia da Ciência, pudemos concluir que a Psicologia não é uma disciplina científica... e agora? O que faremos?

Antes de mais nada: não é preciso se desesperar. Essas três respostas não constituem uma resposta final para a questão, e ainda que eu não goste de deixar questões abertas, essa é uma. Existem diversas outras respostas para esse problema e muita gente também está refletindo sobre ele. Além disso, a Psicologia não vai deixar de existir por que não é científica, ainda que alguns autores alertem sobre essa possibilidade.

Estamos acostumados a valorizar aquilo que é chamado científico e a duvidar do que não o é. Temos bons motivos para isso, mas ainda que o tenhamos, vale a pena pensar: o que a Psicologia ganharia por ser considerada científica? O que perderia? Na prática, que diferença faz?

No próximo texto não pretendo abordar essas perguntas, mas mergulhar um pouco mais profundamente no problema. Quando estudei Kuhn, consegui entender satisfatoriamente a situação da Psicologia e, mais uma vez resumindo uma possível interpretação, pretendo analisar a situação da Psicologia através da teoria dos paradigmas, de Kuhn. Consegui acalmar algumas das minhas inquietações sobre o estado da Psicologia através disso, e espero que meus colegas incomodados com esses mesmos problemas possam encontrar algum ponto de referência.

Como disse o professor Adriano Holanda, depois de apresentar à turma a eterna discussão entre racionalistas e empiristas: durmam com esse barulho.


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